Blog
Compartilhe
Refúgio e migração no pós-Segunda Guerra Mundial
Por Thiago Haruo
Foto: Campo de refugiados na Áustria, final da segunda guerra mundial
Acervo Museu da Imigração/ Arquivo Público do Estado
Desde sua reabertura em 2014, o Museu da Imigração tem se dedicado a desenvolver uma série de projetos com o propósito de documentar e refletir sobre fenômenos migratórios mais recentes. Reconhecendo que o ato de "migrar" abrange uma gama ampla de experiências humanas, transcende limitações históricas ou geográficas específicas, procuramos expandir progressivamente esse conceito. Buscamos abordar não apenas os aspectos históricos, mas também as experiências políticas, artísticas e comunitárias desses grupos.
Nesse contexto, o tema do refúgio tem se tornado cada vez mais presente em nossas exposições e programações culturais. Essa temática é estratégica para compreender as dinâmicas da contemporaneidade, envolvendo elementos cruciais como direitos humanos, geopolítica e as políticas adotadas pelos Estados-nação em relação aos direitos dessas populações.
Mas qual a relação do refúgio com a história das migrações internacionais no Brasil, e mais especificamente, a história da Hospedaria de Imigrantes do Brás?
Nos próximos meses, o blog do CPPR apresentará uma série de textos elaborados pelas equipes do museu sobre o refúgio. Utilizando livros e fontes primárias, buscaremos oferecer uma perspectiva desse fenômeno, principalmente a partir da visão brasileira e, mais especificamente, de São Paulo e da Hospedaria de Imigrantes do Brás. Nosso objetivo é promover a discussão desse tema entre o público do Museu da Imigração, estimulando questionamentos sobre a relação entre o presente e o passado.
Surgimento da categoria refúgio e sua história no Brasil
Conforme o guia para comunicadores “Migrações, refúgio e apatridia”:
Refugiada é a pessoa que foi forçada a deixar seu país de origem e requer “proteção internacional”
devido a fundado temor de perseguição e risco de violência caso volte para casa. Isso inclui pessoas que
são forçadas a fugir de territórios em guerra. O termo tem suas raízes em instrumentos legais
internacionais, notadamente a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, o Protocolo de 1967
e a Convenção de 1969 da Organização da Unidade Africana (OUA) [1].
Segundo Liisa H. Malkki, embora períodos de perseguição e deslocamentos forçados tenham ocorrido ao longo da história, a categoria do refúgio, tal como a entendemos hoje, foi moldada principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial. As sociedades que emergiram dos traumas de conflitos consecutivos, inseridas no contexto da Guerra Fria, observaram com preocupação a situação de grupos deslocados de seus lugares de origem. Em julho de 1947, mais de 700 mil pessoas se encontravam deslocadas, principalmente em países como Alemanha, Áustria, Itália, Europa Oriental e Central [2].
Dois anos antes, poucos meses após o fim da Segunda Guerra, em outubro de 1945, a Organização das Nações Unidas foi estabelecida. Isso representou um esforço conjunto das nações para atuar na arena política internacional, buscando soluções baseadas no multilateralismo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, foi outro marco importante desse período, criando um novo paradigma e ordem mundial no qual a figura do refugiado emergiria.
É possível dizer então, que a categoria social do refúgio, em comparação a contextos anteriores, trouxe como novidade a abordagem do deslocamento forçado de uma perspectiva jurídica, a nível global. Malkki destaca também técnicas e práticas de administração de populações que se tornariam a base para outras situações, especialmente o aparato vinculado aos campos de refugiados constituídos naquele período.
Desde o início desse processo, o governo brasileiro se colocou à disposição para receber essa população, formalizando, em 1948, uma comissão mista com a Organização Internacional para Refugiados (O.I.R.), responsável naquele momento por lidar com a população europeia deslocada [3]. Embora numericamente poucas pessoas tenham sido recebidas nesse primeiro momento, o debate público começou a destacar a importância do Brasil participar desse movimento de auxílio, criando inclusive uma narrativa que justificava esse ato em relação aos interesses nacionais.
Essa justificativa foi construída após um período de interrupção das políticas de incentivo à migração internacional. Várias razões contribuíram para esse fechamento, incluindo as políticas nacionalistas desde o Estado Novo, os efeitos adversos da crise econômica desde 1929 e os conflitos com países emissores de migrantes, como Itália, Alemanha e Japão. Com o pós-guerra, entretanto, uma nova conjuntura se abria, propiciando a retomada das migrações internacionais. Um fato significativo para esse reestabelecimento foi a reabertura da Hospedaria de Imigrantes do Brás em 1952, que havia sido transformada em Escola Técnica de Aviação em 1943.
Defensores da migração internacional viram nessa conjuntura do pós-Segunda Guerra a oportunidade de incorporar uma mão de obra qualificada, adequada a uma economia cada vez mais transformada pela industrialização [5]. Em contraste com o período de fundação da Hospedaria, quando a economia cafeeira e o mundo rural ofereciam oportunidades de trabalho, as políticas agora se voltavam para disponibilizar profissionais necessários em um mundo predominantemente urbano.
Internacionalmente, se nos primeiros anos o surgimento do refúgio estava ligado à preocupação dos países europeus com a população deslocada em seus territórios, ao longo dos anos, a preocupação passou a ser dos países vencedores da Segunda Guerra Mundial de uma maneira geral, que tinham uma vasta população com restrições para viver e trabalhar em seus territórios. Essa preocupação se concretizou na formação do Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias (CIME), decisivo para a cooperação internacional que se desenhava, responsável pela passagem de inúmeras pessoas pela Hospedaria reaberta [4].
A história da Hospedaria de Imigrantes do Brás, por tanto, nos faz refletir sobre como essa categoria passou por transformações ao chegar ao Brasil. Ao analisarmos brevemente a evolução da categoria social do refúgio, torna-se evidente que, em nossa realidade, ela se integrou ao plano de desenvolvimento econômico, identificando nesses indivíduos "bons migrantes", capazes de desempenhar um papel fundamental na edificação de uma nação moderna e industrializada [6]. Ao revisitar esse percurso histórico do conceito, surge a pertinente questão sobre a dificuldade atual, persistente, em discernir entre migração e refúgio, tanto em interações cotidianas quanto na esfera midiática [1].
Quais teriam sido os efeitos no imaginário social de no contexto brasileiro termos relacionado a figura do "refugiado do pós-guerra" à figura das pessoas profissionais, destinadas a contribuir significativamente para o estabelecimento do novo parque industrial, impulsionando a economia nacional? Existe uma continuidade entre a categoria social do refúgio como a entendemos hoje em dia com esse período do imediato pós-guerra?
Discutir o surgimento da categoria social do refúgio, sob a perspectiva da história da Hospedaria de Imigrantes do Brás, nos convida a refletir sobre as transformações ocorridas ao longo do tempo e como essa categoria se entrelaçou com os desdobramentos da história das migrações no Brasil. Seguiremos levantando tais questões, buscando construir as pontes entre o passado e presente, decisivas para a compreensão do nosso tempo em sua complexidade.
Referências
[1] INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS; MIGRA MUNDO; FICAS. Migrações, refúgio e apatridia guia para comunicadores. 2019.
[2] PAIVA, Odair da Cruz. Migrações Internacionais para o Brasil: representações [1947-1978]. Appris, 2020.
[3] A O.I.R cumpriu a função de auxiliar o deslocamento das populações no pós-segunda guerra entre 1947 – 1951. Em 1950 é criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) assumindo as funções exercidas pela dita organização, mas já no marco de atuação das Nações Unidas.
[4] SALLES, Maria do Rosário Rolfsen; PAIVA, Odair; BASTOS, Sênia. Imigração e política imigratória no Pós-Segunda Guerra Mundial: perfil das entradas e trajetórias. SALLES, MRR; BASTOS, S.; PAIVA, OC; PERES, RG, 2013.
[5] PAIVA, Odair da Cruz. Migrações Internacionais para o Brasil: representações [1947-1978]. Appris, 2020.
[6] Em outro artigo, desenvolvemos uma reflexão sobre as consequências da presença continua das categorias de migrante desejável e indesejável na história brasileira: https://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/quem-entra-no-brasil-o-mito-das-portas-abertas.