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Possibilidades para pensar sobre patrimônio em meio a mudanças climáticas
Débora Maria de Jesus - Assistente de preservação
Os alertas sobre as mudanças climáticas deixaram de ser avisos utópicos e distantes depois que passamos a sentir, no dia a dia, os efeitos colaterais de anos de desmatamento e destruição da matéria natural. Ultimamente, nos deparamos com extremos como chuvas intensas, ondas de calor em excesso e queimadas em massas, decorrentes do tempo seco e ações antrópicas. Tal contexto é um dos fatores que causam deslocamentos humanos dentro e fora do país, e um dos motivos é a busca por melhores condições de vida. Esse texto pretende trazer mais reflexões do que respostas sobre como podemos preservar o patrimônio material e imaterial durante períodos de crise climática.
Durante os meses de abril e maio de 2024, acompanhamos a lamentável tragédia no Rio Grande do Sul, estado que apresentou o maior volume de chuvas desde 1941, ocasionando enchentes que obrigaram milhares de pessoas a deixarem suas casas, seus pertences e toda a sua história material para trás, em nome de um ambiente seguro para se protegerem. A água ocupou não só o espaço físico, mas também o lar de famílias, de animais que tiveram que ser retirados às pressas, das vias públicas que todos os dias recebiam inúmeras pessoas, que carregavam histórias e memórias. Ademais, as enchentes adentraram centros de documentação, museus e arquivos existentes nessas áreas, ocasionando danificação nos acervos e até perdas irreversíveis, como foi o caso do Museu de Arte do Rio Grande do Sul que teve 70% do seu acervo, em diferentes suportes, comprometidos.
Felizmente, ainda é possível restaurar tais obras fazendo o uso de técnicas de conservação e restauro consideradas de emergência, como é o caso do congelamento de acervo em suporte papel. A intervenção consiste em diminuir a temperatura dos acervos, impedindo que microrganismos se proliferem nos materiais, tornando mais lento o processo de degradação – já que o restauro demanda tempo, por ser um trabalho minucioso e realizado manualmente. Contudo, é válido ressaltar que para além da sociedade reconhecer a importância de recuperar esse bem cultural, é necessária o incentivo e políticas públicas que viabilizem e auxiliem esse processo. Diante deste cenário, discutir como minimizar os danos das mudanças climáticas se tornou urgente, considerando o futuro desafiador que teremos pela frente.
Além de preservar o patrimônio material, devemos levar em consideração os outros tipos de manifestações culturais que também são afetadas pelas alterações do clima. “Patrimônio” é um termo amplo, que abrange também práticas, saberes e vivências que são ancestrais e fazem parte do cotidiano de uma comunidade, classificadas como patrimônio imaterial, como o caso dos “Ofícios da Baiana de Acarajé” que são tombados na instância federal. O seu tombamento contempla o modo de fazer acarajé, abará, araçá e outros alimentos presentes no tabuleiro, que tradicionalmente são realizados pelas baianas. Esse conhecimento é passado oralmente de geração para geração e representa os ritos religiosos e tradições afrodescendentes, bem como dois lugares sagrados para os indígenas do Alto-Xingu, no Mato Grosso, Sagihengu e Kamukuwakáque receberam o mesmo tombamento que foi solicitado com o objetivo de garantir proteção do sítio arqueológico existente e acesso da comunidade indígena ao local. O Kwarup, que ocorre nos locais demarcados, recebe 14 povos indígenas e é um rito importante para a cultura deles, ele abarca mitos, troca de bens materiais e contribui para a manutenção do senso pertencimento cultural e espacial. E nesse caso temos um patrimônio natural por compor uma paisagem. Entretanto, com a seca, queimadas e os conflitos políticos do Governo Federal, põe-se em risco a preservação desse território, que por ser uma área ambiental ele está sujeito às alterações climáticas e principalmente as ações antrópicas.
Os museus e centros de memórias são instituições que podem atuar como agentes ativos nesse momento, promovendo ambiente de fomento de ideias, questionamentos e reflexões acerca do assunto. Anualmente, acontecem eventos que discutem sobre o meio ambiente, por exemplo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC, organização das Nações Unidas, que em 2007, em um dos seus relatórios, o curador Richard Hebda afirmou:
O curso da humanidade é insustentável e tem empobrecido não apenas os recursos que usamos, mas também impactado os próprios processos que nos sustentam e a todas as outras vidas na Terra. A humanidade está numa encruzilhada, e os museus têm o papel vital de ajudar as pessoas a tomarem decisões informadas sobre que rumos tomar.
Mesmo que essa fala tenha sido articulada há 17 anos atrás, ela ainda se mostra bastante atual. Nesse sentido, e buscando fomentar a discussão e difundir informações sobre o tema, o Museu da Imigração realizou a nova exposição temporária, “Mova-se! Clima e Deslocamentos”, que trata justamente das transformações globais que temos observado no meio ambiente. Ela é composta por depoimentos, fotografias, dados informativos e acervos. Um destes tem relação com as ideias que foram levantadas neste escrito, se trata de uma obra têxtil produzida pela líder comunitária e artesã Tatiana Cardoso.
A arte retrata a vivência da comunidade, que se destaca como um importante ponto de pesca e secagem de peixe. A riqueza da obra está em mostrar as diversas atividades realizadas coletivamente, em comunhão, na Enseada da Baleia, Ilha do Cardoso, estabelecendo resistência ao permanecer e difundir suas práticas e valores. A comunidade caiçara passou por um deslocamento forçado de onde moravam, ocasionado pela erosão costeira. Eles se fixaram em uma nova região, nomeada Nova Enseada, e esse processo teve o protagonismo do grupo de mulheres que compõem o “Mulheres Artesã da Enseada da Baleia (MAE)”, que atuaram na busca por contribuições para reconstruir as casas e viabilizar a realocação das famílias, participaram de editais e atuaram na divulgação dos eventos climáticos que a comunidade estava enfrentando. Os moradores caiçaras têm trabalhado para manter as suas tradições culturais por meio da produção de artesanatos, atividades de pesca e turismo responsável. Dessa forma, é possível perceber que a preservação consiste em estar ativamente agindo em prol do patrimônio de maneira contínua e considerar todas as possibilidades de riscos, além dos desdobramentos que eles possam acarretar, para que possamos olhar para o passado e entender que o somos hoje.
Referências
YAMAOKA , Juliana Greco; CARDOSO, Tatiana Mendonça; DENARDIN , Valdir Frigo; ALVES, Alan Ripoll. A comunidade caiçara da Enseada da Baleia e a sua luta pelo território – Cananéia (SP). Guaju , Matinhos, v. 5, n. 1, p. 138-165, 26 jun. 2019.
DIBLEY, B. Museums and a common world: climate change, cosmopolitics, museum practice. Museum & Society, v. 9, n. 2, p. 154–165. 2015.