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Conexões Culturais: Uma Janela para a Arte Chinesa
Bianca Alves - Analista de Pesquisa
Ao discutirmos a função da pesquisa em museus, é indispensável refletir sobre como esse processo é um dos pilares essenciais para o cumprimento das definições estabelecidas para essas instituições [1]. Segundo a última definição realizada em 2022 pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM):
Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Os museus, abertos ao público, acessíveis e inclusivos, fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Os museus funcionam e comunicam ética, profissionalmente e, com a participação das comunidades, proporcionam experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimento. [1]
Assim, observa-se que o processo investigativo conduzido por pesquisadores em museus está em consonância com os diversos aspectos mencionados acima. Ao realizar pesquisas sobre objetos, obras de arte, registros históricos, documentos ou outras fontes relacionadas ao tema proposto, o profissional contribui para a difusão do conhecimento, promovendo reflexões e uma compreensão aprofundada do acervo. Esse esforço visa garantir que o público não apenas se interesse, mas também compreenda plenamente o patrimônio material e imaterial preservado pelo museu [2].
Com o propósito de valorizar e divulgar a riqueza cultural e artística contida na coleção de artes plásticas da reserva técnica do Museu da Imigração, este artigo apresenta uma das obras encontradas no acervo. Trata-se de uma peça artística de origem chinesa, sem título e com informações limitadas sobre sua produção ou identificação do doador. Apesar dessas lacunas, a obra integra o acervo do museu há mais de uma década [3].
Embora a escassez de dados relativos à produção dificulte uma compreensão imediata e intuitiva, a expressão visual da obra revela uma série de características de indiscutível relevância, essenciais para a identificação de seus cânones, contexto cultural e a identidade que traduz. As cores vibrantes, o personagem representado, a técnica empregada e a escolha dos demais elementos da composição, indubitavelmente, são a chave para compreender questões significativas que transcendem a estética.
Em primeiro lugar, é preciso partir do ponto de que, para compreender produções artísticas de outras sociedades, é de extrema importância compreendê-las como um todo, desprendendo-se de ideias concebidas a partir da cultura individual do observador. De acordo com Michael Sullivan, em seu livro As Belas Artes: A arte Chinesa e Japonesa: “A arte apenas pode ser devidamente apreciada em estreita conexão com a cultura, na qual desempenha um papel de relevo”[5]. Diante disso, analisaremos a obra considerando as significações no contexto chinês.
Nesse sentido, um dos primeiros aspectos a ser observado será a técnica utilizada no trabalho artístico: o papel cortado. Considerado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) parte do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, o método consiste em dobras e recortes minuciosos em papéis que podem ou não ser coloridos, formando desde desenhos mais simples até obras extremamente complexas. [6].
Esse estilo representa não somente o desenvolvimento de técnicas artísticas chinesas, refletidas por aspectos culturais, sociais e filosóficos de cada época, como também recupera a ancestralidade, viabilizando a difusão desse conhecimento milenar [7].
O carimbo com inscrições orientais na extremidade inferior esquerda, comum por ser utilizado como uma assinatura do criador ao finalizar sua produção, também demonstra o refinamento de seu fazer artístico [8]. Outrossim, a inscrição em inglês abaixo da imagem, Monkey King — traduzida como Rei Macaco, em português — oferece os primeiros indícios sobre o que a obra representa.
O Rei Macaco, também conhecido como Sun Wukong, é uma figura famosa na literatura chinesa, caracterizado por um macaco com características humanas e poderes extraordinários [9]. Popularizado pelo renomado romance chinês Jornada para o Oeste, sua personalidade é conhecida por simbolizar a reivindicação pela liberdade e imortalidade, através de um comportamento considerado rebelde, astuto ou até mesmo malicioso [10].
Devido a grande popularização do livro, não tardou para que o clássico ganhasse lugar de destaque na Ópera Tradicional Chinesa, mais especificamente, na Ópera de Pequim, também listada pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A referida forma de expressão teatral caracteriza-se pela intersecção de um diversificado conjunto de manifestações artísticas, entre as quais se sobressaem, de maneira marcante, as pinturas faciais e as máscaras utilizadas durante o espetáculo [11].
Inicialmente, o uso das máscaras nos grupos de ópera seguia regras estritas: elas eram entregues aos atores apenas momentos antes de entrarem em cena e devolvidas imediatamente após a performance. Seus designs, ricamente detalhados, eram criados em harmonia com o contexto histórico e cercados por inúmeras superstições, revelando a profunda ligação entre arte e crenças culturais da época. [12]
Para o caso da obra em questão, é possível identificar algumas características canônicas que estão alinhadas ao ato de representação de Sun Wukong. A cavidade ocular branca assemelha-se à de um macaco real, enquanto o amarelo nas áreas ao redor remete ao dourado, representando seu estado elevado após atravessar um processo místico de transformação divina. [12]
Além disso, o protagonista segue os desenhos faciais atribuídos aos padrões de deuses e demônios, consolidando essa categoria em elementos característicos da pintura facial chinesa. Um exemplo é o formato de seu rosto, típico da versão norte do espetáculo, que lembra um sino invertido por sua forma alongada. Esse traço é realçado por um tom de rosa escuro, possivelmente resultante do desbotamento de um vermelho original, tonalidade frequentemente encontrada na área central da face, além do tom em azul que delimita uma segunda camada do formato [12].
Diante disso, é possível refletir sobre o que as cores simbolizam para as pinturas faciais. O azul supracitado representa a teimosia, uma característica marcante do protagonista. Essa tonalidade, inclusive, está espalhada pelos demais ornamentos da composição, que remetem aos detalhes da indumentária do Rei, sem contar a presença do amarelo, roxo e verde, que traduzem, respectivamente, a inteligência, o senso de justiça e a bravura [12].
Contudo, partindo para um último tópico em relação à análise iconográfica da obra, vale refletir sobre como os códigos visuais dessas máscaras estão intrinsecamente ligados a uma comunicação visual muito bem delimitada. Por serem obras estáticas, determinadas expressões são perpetuadas para reforçar a mensagem que cada uma deseja transmitir. Dentro desse contexto, algumas partes do rosto são consideradas primordiais para conduzir a interpretação das emoções, sendo elas: sobrancelhas, boca e olhos [13].
Para o caso da representação da máscara escolhida, é possível observar alguns traços de desagrado através das sobrancelhas franzidas no centro da testa, numa tonalidade amarronzada, enquanto a boca aberta, formada pelos espaços em branco abaixo, e os olhos em destaque, bem abertos e dispersos, denotam uma reação típica de alguém que está surpreso [13]. A combinação desses "códigos visuais" transparece muito bem o misto de sensações intensas que permeiam o Rei Macaco em suas histórias, as quais são sempre contadas evidenciando a personalidade marcante e exagerada da figura.
Cada traço, cor e elemento visual carrega o potencial de nos conectar ao contexto social e filosófico em que o trabalho artístico foi produzido. É por meio da pesquisa que esses significados ocultos são desvendados, transformando acervos e arquivos em ferramentas vivas de reflexão, troca e conexão com o público.
Valorizar o que é produzido por culturas diversas amplia nossa percepção de mundo, ao mesmo tempo em que fomenta o respeito e a celebração da pluralidade. Reconhecer e destacar obras como esta não apenas preserva a memória cultural, mas também fortalece o diálogo intercultural, garantindo que múltiplas narrativas encontrem seu lugar em instituições que moldam nosso entendimento sobre passado, presente e futuro.
Bibliografia:
[1] ICOM. Definição aprovada em 24 de agosto de 2022 durante a Conferência Geral do ICOM em Praga. Disponível em: <https://www.icom.org.br/?page_id=2776>. Acesso em: 13 nov. 2024.
[2] GONZAGA, Denize. A importância da pesquisa em museus. Florianópolis: Conselho Regional de Museologia da 5ª Região. Disponível em: <https://corem5r.org.br/a-importancia-da-pesquisa-em-museus-por-denize-gonzaga>. Acesso em: 13 nov. 2024.
[3] Gostaria de expressar minha profunda gratidão à documentalista Luciane Santesso pelo generoso auxílio e conhecimentos compartilhados a respeito do acervo e dos pormenores da obra, cuja contribuição foi essencial para o desenvolvimento deste trabalho.
[4] Agradeço também à conservadora Eloísa Galvão, cujo trabalho na digitalização da obra foi essencial para a visualização e utilização da imagem neste projeto.
[5] SULLIVAN, Michael. As Belas Artes: A arte Chinesa e Japonesa. São Paulo: Grolier, 1971.
[6] UNESCO. Chinese paper-cut. Disponível em: <https://ich.unesco.org/en/RL/chinese-paper-cut-00219>. Acesso em: 20 nov. 2024.
[7] IBRACHINA. A milenar arte chinesa de cortar papel. Disponível em: <https://ibrachina.com.br/a-milenar-arte-chinesa-de-cortar-papel/>. Acesso em: 20 nov. 2024.
[8] KONG, Mário S. Ming. Iniciação às técnicas da pintura chinesa. [S.I]: Archi&book's, 2022. p. 48.
[9] IBRACHINA. Clássico chinês "Jornada para o Oeste" continua influenciando a cultura pop. Disponível em: <https://ibrachina.com.br/classico-chines-jornada-para-o-oeste-continua-influenciando-a-cultura-pop/>. Acesso em: 16 nov. 2024.
[10] NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdadeira história por trás da lenda de Sun Wukong, o Rei Macaco da China. Disponível em: <https://www.nationalgeographic.pt/historia/verdadeira-historia-por-detras-lenda-sun-wukong-rei-macaco-china_5326>. Acesso em: 16 nov. 2024.
[11] UNESCO. Peking opera. Disponível em: <https://ich.unesco.org/en/RL/peking-opera-00418>. Acesso em: 20 nov. 2024.
[12] PAN, Xiafeng. The stagecraft of Peking Opera: From its origins to the present day. New World Press, 1995.
[13] CHEN, Hui Hsia. Visual Codes for Beijing Opera Masks.