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Brasileiros na Hospedaria: "O migrante quer morar" - a presença nordestina na luta por moradia na cidade de São Paulo
Desde 08 de julho de 2020, a série Brasileiros na Hospedaria trouxe textos, toda quarta-feira, que buscaram refletir e discutir sobre os diferentes usos do edifício da Hospedaria do Brás e o fenômeno da migração interna, especialmente acerca dos migrantes nordestinos em São Paulo. Para encerrar a série, convidamos a Prof.ª. Lidiane M. Maciel, doutora em Sociologia pela Universidade de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP), autora desse artigo.
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"Limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela deveria ter ficado no Sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal" (LISPECTOR, 1977, p. 29)[1]. É desta forma que Clarice Lispector retratou magistralmente, por meio da personagem Macabéa, a vida de uma migrante nordestina em uma grande cidade brasileira ainda na década de 1970.
Dados demográficos coletados pelo Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística (IBGE) registravam que em São Paulo, em 1980[2], o saldo líquido de migrantes nordestinos era de 3.383.681. No entanto, o saldo bruto (que envolve todos movimentos) era mais significativo ainda e estava na casa dos 6.602.458 indivíduos.
Pensando ainda sobre a experiência de inúmeras 'Macabéas' de Lispector, a negação do direito à moradia é exemplar do processo da contrariedade da cidade a presença da população migrante. Já no início do século XXI, a partir dos dados do Censo Demográfico de 2010[2], verifica-se que 41% dos moradores da área Sé/Brás (distritos do Brás, Bom Retiro, Cambuci, Pari e Sé) eram nordestinos. A moradia em pensões, cortiços ou aglomerados subnormais "favelas" e bairros longínquos de seus locais de trabalho era quase inevitável. As ocupações dessa população também eram bem conhecidas. Era prioritariamente na construção civil, no trabalho doméstico, no comércio e nos serviços que os migrantes nordestinos eram encontrados.
É ainda década de 1980 que os movimentos de moradia da cidade de São Paulo, em meio ao processo de redemocratização se apresentaram com força. A luta deles estava relacionada à discussão das condições de vida precárias que viviam a população migrante que chegava em número expressivo. A busca por "melhorar de vida" era apresentada como principal motivação para o deslocamento, conforme mostrou Durham (1973)[3] no livro "A caminho da cidade".
Nota-se que a acolhida dos migrantes de diversos estados do Nordeste não constituía uma preocupação à gestão empresarial e estatal. Diferentemente do final do século XIX e início do XX, em que o governo de São Paulo discutia minimante políticas de acolhimento, como as que deram origem em 1888 à Fundação da Hospedaria do Imigrante[4], nos anos de 1980 pouco se debatia a migração planificada e a questão do financiamento da moradia para os migrantes.
Nesse momento, todo processo migratório, da viagem à moradia tinha o migrante como protagonista, conforme mostrado na Figura (1). Esclarece-se que quase sempre apenas as redes de parentesco e amizade e instituições religiosas ligadas à igreja católica eram pontos de apoio no processo de deslocamento e estada. Desta forma, a urbanização da cidade de São Paulo, inserida na dinâmica indireta de atração de mão de obra para o chão da fábrica, reservou aos trabalhadores migrantes os cortiços, hotéis e pensões do centro da cidade, e fundamentalmente os terrenos mais longínquos sem infraestrutura e equipamentos urbanos. Ressalta-se que essa estrutura perversa de acolhimento ao trabalhador migrante e suas famílias fortaleceu a formação do mercado imobiliário da cidade de São Paulo, como bem ressaltou o sociólogo Lúcio Kowarick na obra "A espoliação Urbana" de 1979[5].
O capital rentista imobiliário, juntamente com o industrial, consolidava uma cidade que se beneficiava do trabalho dos migrantes ao mesmo tempo que era contrária a presença deles, os colocando como "bodes expiatórios" das questões sociais como violência, criminalidade e favelização da cidade.
Deste contexto "caótico" ou "lógico em sua desordem", como definido por Kowarick (1979), as condições precárias de vida apresentadas durante o período de intensa industrialização em São Paulo fizeram com que o aparecimento de movimentos em defesa da moradia digna fosse uma emergência decisiva de vida ou morte na cidade. A Figura (2) dá destaque a uma dessas manifestações pelo direito à moradia ainda na década de 1980.
Segundo Maricato (1988)[6], o movimento de moradia desdobrou sua pauta extensa de reivindicações, conectando-se com os assuntos derivados da fábrica e do movimento operário. O Movimento Nacional pela Reforma Urbana foi fundamental para a inserção do Capítulo de Política Urbana na Constituição de 1988, pensou largamente as condições de urbanização.
Então, até a década de 1990, importantes entidades de luta pela terra urbana foram fundadas. Segundo Maricato e Fecchio (1992, p. 26)[7]: ANSUR, Articulação Nacional do Solo Urbano e a União dos movimentos de Moradia, que vieram juntar-se ao MUF – Movimento Unificado de Favelas (âmbito São Paulo e regiões próximas). Dessa forma, rompendo com o mito da sociedade amorfa (Kowarick, 1979), como reflexo das lutas iniciadas ainda nos anos 1970 e como também citado por Maricato (1992), em 2018, em São Paulo, há 149 entidades cadastradas no Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida. Há, pelo menos, 206 ocupações, com cerca de 45 mil pessoas (dados 2018 – Secretaria de Habitação de São Paulo).
As entidades de maior organização interna são o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), concentrando suas atividades em terrenos, a Frente de Luta por Moradia (FLM) e a União dos Movimentos por Moradia (UMM). O Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) soma-se a essas outras entidades de menor expressão, como o Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), o Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto de São Paulo (GRIST), o Terra Livre e o Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), responsável pela gestão do Edifício Wilton Paes, do trágico acidente de 1º de maio de 2018. Nesse contexto, conforme apontado por Trindade (2018)[8] e outros pesquisadores, a ocupação do centro se faz estratégica para visibilidade da problemática.
De acordo com dados do Plano Municipal de Habitação de 2016, para reduzir a zero o déficit habitacional a cidade de São Paulo, precisa-se de 358 mil novas moradias. Soma-se a esse número mais 830 mil domicílios localizados em assentamentos subnormais (precários), que necessitam de melhorias e regularização fundiária – quase 10% da população do município de São Paulo. O estado de São Paulo é o principal destino de migrantes vindos da região Nordeste: 5,6 milhões em 2015, 12,66% da população do estado, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE.
Durante os anos de 2018 e 2019, realizei uma série de visitas com certa frequência a cinco ocupações do centro da cidade de São Paulo. Essas visitas aconteceram por meio de eventos que ocorreram nessas ocupações ao longo dos anos de 2018 e 2019. Entre essas ocasiões, estive em festas juninas, exposições artísticas, shows e almoços de diversas qualidades, nos quais visitei as ocupações quando abertas ao público.
Em outras ocasiões, visitei as ocupações a convite de famílias que lá moravam. Numa dessas oportunidades, uma líder nordestina destacava em entrevista realizada que: O trabalhador sem teto é aquele que não tem uma moradia, porque o movimento não incentiva a propriedade. Nós não queremos proprietários, não queremos um novo núcleo de especuladores; o que nós queremos é formar cidadãos conscientes e sabedores de seus direitos e deveres. O movimento dos sem teto faz esse fluxo de inclusão: a gente descentraliza o poder. Estamos nas audiências públicas, nos conselhos municipais, Estadual; nós estamos dentro das câmaras, a gente discute a cidade (...) o objetivo é ter um cidade inclusiva. (Depoimento colhido em 26/08/2018).
Nessa entrevista, a líder ainda enfatizou que o movimento era composto por migrantes, especialmente entre os que trabalham e moram no centro da cidade, provenientes de diversos estados brasileiros. Ainda em destaque dos estados nordestinos e imigrantes da América Latina, do Oriente Médio e da África. Dessa forma, verifica-se a sobreposição de processo de deslocamentos migratórios, o que fortalece a hipótese já lançada por Baeninger (2012, p.7)[9] que "nas condições sociais contemporâneas, a complexidade, a importância, e as novas rotas e direções coexistem com processos migratórios antigos (internos e internacionais)", que podem ser observados na luta por moradia digna na cidade de São Paulo.
Compreende-se, então, que na ordem neoliberal atual ao mesmo tempo que há espaços de exploração/dominação da força de trabalho, em destaque a migrante, também há espaços de resistências propositivas, às quais colocam obstáculos pertinazes a ela. Essa ordem é hegemônica no espaço urbano, ainda que não apenas nele, posto que ela dá forma e funcionamento das relações econômicas – e, por conseguinte, sociais e políticas. Uma vez que ela mercantiliza o espaço urbano, dá os contornos da condição de excludência e de precariedade, que são características das condições de vida das populações migrantes. Desta forma, a resistência é uma emergência à própria sobrevivência, como o muro grafitado da Figura 3 nos lembra: "Quem não luta tá morto". Então, nesse ambiente, os migrantes nordestinos em São Paulo são personagens fundamentais na construção de sua riqueza e na luta pelo direito à cidade.
Agradecimentos
Ao Museu da Imigração do Estado de São Paulo, ao Observatório das Migrações em São Paulo – coordenado pela Profa. Dra. Rosana Baeninger –, e à Missão Paz, que tem oferecido espaços para o estudo e a reflexão das diversas jornadas migratórias numa perspectiva histórica e contemporânea.
Lidiane M. Maciel é doutora em Sociologia pela Universidade de Campinas (UNICAMP), pesquisadora do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP) e professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade do Vale do Paraíba (PLUR/UNIVAP).
Referências bibliográficas
[1] LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Livraria Jose Olympio Editora, 1977.
[2] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (IBGE). Censos Demográficos 1980 e 2010. Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-2020-censo4.html?=&t=o-que-e. Acesso 26 de out. 2020.
[3] DURHAM, E. A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva. 1973.
[4] A Hospedaria foi pensada para atender as necessidades de triagem e acolhimento inicial da mão de obra imigrantes que iriam para as lavouras de café no interior de São Paulo. Ainda na primeira metade do século XX destaca-se também uma série de companhias particulares “drenavam” da força de trabalho para São Paulo até 1939, ano da criação do I.T.M (Inspetora de trabalhadores migrantes) e que vigorou até 1960, e constituía um espaço apoio e controle da força de trabalho migrante.
[5] KOWARICK, L. A espoliação urbana. São Paulo, Paz e Terra. 1979.
[6] MARICATO, E. Problemas e mitos na luta pela moradia. Travessia. Revista do migrante. CEM, ano (1) n.2. set-dezembro. 1988. p.10-15.
[7] MARICATO, E; FECCHIO, F. A luta pelo direito de morar. Travessia. Revista do migrante. São Paulo. CEM ano 05, n. 14, 1992. p. 25-30.
[8] TRINDADE, T. A. Protesto e Democracia: Ocupações Urbanas e Luta pelo Direito à Cidade. Jundiaí. Paco Editorial. 2018.
[9] BAENINGER, R. Fases e faces da migração em São Paulo. Campinas: Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp, 2012.