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Os tribunais e a proteção dos migrantes diante da pandemia
Em 2018, o Of Monday Trio lançava, em Paris, uma canção que bem retrata os tempos atuais, com o nome sugestivo de Times of Worry[1]. Em sua letra, fica claro o desejo de voar como um pássaro e se esconder longe desse mundo:
"I wanna fly, fly, fly high like a bird, I wanna hide, hide, hide far from this world, In these times of worry, friends are love you see. (...) You'll be as you are. Come with me, stay with me, In these times of worry."
Mas, estamos no mundo real, e nos escondermos dele não é uma opção, o que indica que a melhor saída talvez seja a mudança, uma convocação feita diretamente pela pandemia para todos os seres humanos do planeta. Tanto para quem migra quanto para quem pensa que não migra, pois migrar é algo inerente a todos os seres humanos.
Os desafios apresentados à humanidade durante a pandemia podem trazer profundas mudanças em todas as áreas da atividade humana. A importância do Estado ganhou fôlego, tendo sido ressuscitada. Evidenciou-se a relevância de políticas públicas de efetivação de direitos fundamentais, como as relativas à proteção da saúde, distribuição de renda e fomento da economia real.
Também deve ser objeto de reflexão o controle ou a manutenção da internacionalização das cadeias de produção de mercadorias utilizadas nos tratamentos de doenças variadas, como equipamentos de proteção individual para profissionais da saúde e material hospitalares, como ventiladores mecânicos, o que certamente servirá para se repensar a lógica da produção em países em que o custo é mais baixo.
O artigo tem foco específico no direito migratório e a possível reformulação nas relações que esse mantém com Estados, direito internacional e política. Destacando-se a necessidade cada vez mais premente de se ter uma regulação internacional das ações dos Estados, mas agora acompanhada de estruturas que possam lhe garantir mais efetividade.
O ano de 2020 tem sido um ano difícil para a sociedade e para os governos. A pandemia do coronavírus alcançou um planeta que, há algum tempo, está tentando solucionar, sem sucesso aparente, grandes problemas no campo da desigualdade social, degradação ambiental e conflitos armados descentralizados. Todos esses fatores tornaram mais difícil que os países pudessem dar uma resposta efetiva de combate à disseminação do vírus com foco na proteção da saúde e na manutenção das rendas das pessoas. O Direito Internacional depara-se com a necessidade de lutar pela transparência em períodos de pandemia.
Para grupos em situação de vulnerabilidade, como é o caso dos migrantes, o cenário pode ser entendido como mais delicado, pois a circulação pelo mundo fica restrita, o que impacta na tentativa de saírem de locais em que suas vidas correm risco (Portaria Interministerial n. 255, expedida pelo Governo Brasileiro, que restringe a entrada de migrantes no território nacional), o acesso a aparatos de saúde é precário, tendo em vista que há restrições a direitos sociais para migrantes em situação migratória indocumentada, e o socorro econômico pode não vir, posto exigir a apresentação de documentos que não são acessíveis a parcela dos migrantes (como é o caso do Cadastro de Pessoa Física - CPF - no Brasil, para se ter acesso ao auxílio emergencial). Os grupos em situação de vulnerabilidade podem ficar à margem do debate, especialmente quando, como no caso do Brasil, eles não possuem direito de participar das decisões políticas, tendo em vista que migrantes não votam no país.
Encontrar meios de proteger a saúde da população, ao mesmo tempo em que se mantém em vigor a economia, atendendo aos anseios da população, é das maiores tarefas que muitas nações já enfrentaram na sua história. Inegavelmente, as pressões que nascem do lado daqueles que percebem a emergência sanitária são contrapostas por aquelas pressões provenientes de grupos que querem enfatizar o crescimento econômico a todo custo.
O trabalho visou expor as decisões judiciais e os possíveis argumentos jurídicos para responder às questões de interesse dos migrantes no tocante ao acesso ao auxílio emergencial, direito de ingresso e atendimento de saúde, durante a pandemia, tendo em vista as soluções do direito posto brasileiro.
O pano de fundo é que o mundo está interconectado, mas ainda vive no cenário da ênfase à soberania ilimitada dos Estados. No pós pandemia, a exigência será de olhar para a realidade existente no sentido de se perceber que não se constroem relações econômicas, financeiras ou de mercado, sem que haja normas e estruturas internacionais de limitação do poder dos Estados para garantir padrões mínimos direitos para garantia da dignidade humana em todos os locais do globo.
O convite é para que o mundo deixe a era do mercado e passe para a era dos direitos, universais e, por isso, contramajoritários, inclusive no campo das relações internacionais, tão preocupadas com a criação de ambiente propício para o mercado e para um desenvolvimento focado exclusivamente no campo econômico. A pandemia indica que o desenvolvimento é o que garante estruturas de saúde e de distribuição de renda. O desenvolvimento a ser alcançado é o desenvolvimento social e de direitos.
Sem medo de antecipar equivocadamente conclusões, é possível afirmar, porém, que o pós pandemia exigirá um mundo mais internacionalizado, com maior controle de políticas públicas pelo direito internacional e com mais mecanismos para garantia de democracia e de liberdade de imprensa.
Em outras palavras, criação de padrões mundiais de saúde, de proteção ao trabalhador e à sociedade (com combate à pobreza) com a respectiva criação de meios de efetivação da fiscalização da aplicação de tais padrões pode ser a melhor direção para um mundo que é interconectado em aspectos econômicos. Assim, precisa-se de mais direito internacional e não de mais direito interno. Exige-se coordenação mundial de ações e não de xenofobia criadora de conflitos. Para tanto, superar discursos populistas é mudar o mundo para um local de respeito à ciência, à democracia e às saídas duradouras e não eleitoreiras.
Para terminar o trabalho como ele começou, vale a citação de outra canção chamada The Colloquy of Mole & Mr. Eye[2]. É uma composição de Wesley Stace, cantor britânico, nascido em 1965, que utiliza o nome artístico de John Wesley Harding.
A letra representa uma conversa entre uma toupeira e o olho. A primeira vive nos subterrâneos da Terra, enquanto o segundo fica nas alturas. O diálogo entre eles mostra sensações diferentes sobre a vida.
Todavia, ambos abdicaram da vida no solo, na realidade. Até que ao final reconhecem essas diferenças, chegando a um ponto de concordância na seguinte passagem:
"Hey Mr. Eye, there's one thing we agree on / You'll never come here and I'll never go there / My eyes aren't accustomed to all of your bright lights / Your lungs they would gasp for a good blast of air / We've made decisions, we've both had visions / Of something else, somewhere else, some other way / But your money bought you, my instincts taught me / The ground's not the best place to live on today / Mole in his hole, Eye in the sky / That's why we moved from the ground / Long live the life we have found"
Nesse sentido, populistas podem ter visões diferentes da vida, mas vão adotar exclusivamente a própria. Dessa forma, sempre vão negar o pluralismo, como acontece com a conversa entre a toupeira e o olho. O que se pode garantir, no entanto, é que o populismo não vai se permitir viver na realidade, com o diálogo com a ciência e com a diversidade, pois, dessa forma, poderá engasgar e cair, desaparecendo.
A democracia, o pluralismo, a liberdade de circulação de pessoas e o direito internacional podem arejar as relações mundiais, fortalecer as democracias e permitir a regulação internacional das políticas públicas. O ensinamento principal dessa pandemia será que não precisamos esperar a próxima para fazer uma declaração conjunta dos G20 para socorro econômico mundial. E a principal declaração conjunta deve ser pela proteção da democracia, da ciência e da liberdade de imprensa.
E, essencialmente, o ensinamento mais relevante é que migramos e para tanto é fundamental que estruturemos normas de proteção ao direito de todo ser humano, que, por natureza, é migrante, no espaço, no tempo ou nas ideias.
Luís Renato Vedovato é pesquisador da FAPESP, Pesquisador Associado do Observatório das Migrações em São Paulo, Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP, Professor de Direito Internacional Público da PUC de Campinas, Professor Doutor da UNICAMP e Pesquisador de Projeto de pesquisa conjunto da Cardiff University e da UNICAMP.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] TRIO, Of Monday. Times of Worry. Single. Paris, 2018. Acessível em https://open.spotify.com/track/3Q9fPaGThYUHbswv7TBrXT?si=fcnVHYQ9RUmll89UbZAIWw ou https://www.youtube.com/watch?v=SuoAPbhnmFQ.
[2] HARDING, John Wesley. The Colloquy of Mole and Mr. Eye. The Sound Of His Own Voice. Los Angeles: Yep Roc Records, 2011. Acessível em https://www.discogs.com/John-Wesley-Harding-The-Sound-Of-His-Own-Voice/release/3710348.
Foto da chamada: Alejandro Cartagena via Unsplash. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" em branco.
A ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO – IFCH/UNICAMP), para divulgação do livro "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.